sexta-feira, 11 de setembro de 2009

CRÔNICA - Mané le Coiffeur - com ou sem emoção?

Mané le Coiffeur sempre começa suas esculturas capilares, que é como chama um singelo corte de cabelo, com uma pergunta:

- C'est avec ou sans emotion?

Enquanto o cliente reflete, ele improvisa um balé, piruetando com uma tesoura em cada mão e cantando um trecho de Back in Bahia, do Gil: "puxando o cabelo, nervoso querendo ouvir Celly Campelo pra não cair naquela fossa". Música da qual Mané garante ser co-autor. Mas não exige direitos por na época ter ficado bravinho, como diz, com o compositor baiano, que teria mudado a letra originalmente pensada. Era "pintando o cabelo, e depois passando um cremezinho pra não sair aquela palhoça", jura, de tamancos juntos, assegurando no entanto não haver mais nenhuma ponta de mágoa entre os dois. O assunto fora superado "com o passar dos anos, muitos anos".

No seu bureau d'esthétique, a alternativa sem emoção é a mais pedida. E foi a escolhida por um conhecido antropólogo francês que entrou ali de forma meio desprevenida. Mané prontamente sentou-o na cadeira e sacou o cardápio com as opções de corte, divididas por tipo, extensão, cor e inspiração.

- E você, pensador. Como posso satisfazê-lo?
- Queria alguma coisa meio brasileira, meio exótica. Tem?
- Tem eu, fofo. Brasileiríssimo, dos pés ao último fio de cabelo alisado. Serve?
- Tô falando do corte.
- Ai, essa gente sem imaginação... Olha aqui, pra você existem várias possibilidades chi-que-tér-ri-mas. La Tour Eiffel des Tropiques, por exemplo, é um hit. Trata-se de uma elevação cônica das madeixas no centro do cocuruto, com uma singela aplicação de gel. Combinado com uma tintura especial verde e amarela dá um efeito deslumbrante. E até emagrece.
- Esse não é pra mim.
- E o Je Vous Salue Piauí? Primeiro a gente corta tudo bem curtinho. Depois coloca você naqueles secadores gigantes, tipo chapéu, sabe?, na temperatura máxima, até você começar a transpirar como a tampa de uma chaleira. Vai até apitar.
- E aí?
- Aí você se sente no verão piauiense, nem que seja por alguns minutinhos.
- Também não. Queria algo mais ousado.
- Hmmm. Então sugiro o Tropicaliagain.
- Trop quoi?
- Tropicaliagain, Jesus! O preferido de teatrólogos marginais, escritores marginais e estudantes de ciências sociais da Sorbonne.
- Marginais também?
- Sonha, baby. Esses aí só ficam à margem quando vão à beira do rio Sena tocar violão e encher a cara.
- Parece interessante.
- É sim. Dá aquele ar de manifestante do terceiro mundo que você procura, mas sem perder a classe. Classe é tudo, meu bem.
- E como é?
- É todo um processo. Primeiro uma avolumada, depois uma ligeira caracolizada e, no fim, um banho de lama.
- Gostei. E você tira a lama com xampu neutro?
- Tirar a lama? Acorda! Santa, a lama faz parte do look. Você a deixa lá até o cabelo ficar duro. Aí o visual vai estar completo. É como se a Tropicália fosse revista pelo MST.
- Perfeito! Vou fazer o maior sucesso já na próxima reunião de condomínio. Quanto custa esse?
- Depende de quanto você está disposto a pagar.

Disse isso e foi se aproximando, com a boca meio aberta e o olhar lânguido. O antropólogo deslizou pela cadeira com a agilidade de uma cobra coral e ganhou rapidinho a rua.

Não é muito comum clientes escolherem o corte com emoção. Mas às vezes acontece. Como no caso do músico tímido. Tão tímido que só tocava violão dentro do armário. Depois de alguns anos de terapia, ele encheu-se de coragem e decidiu ser mutcho loco, pirar no palco, radicalizar mesmo. E a mudança começaria pelos cabelos.

- Com emoção. E muita. Aproveita que hoje tô valente.
- Valente? Ó-ti-mo. Enfim uma franga intrépida.

Mané le Coiffeur tratou de colocar uma máscara tapando a vista do sujeito. Em seguida, vestiu-o com o avental que impede a roupa de se sujar. O músico não via nada, mas escutava tesouradas, sprayzadas e vários "humm" e "ohh". De vez em quando fazia-se também silêncio, logo interrompido por barulhos vindos dos fundos da loja. Após alguns minutos, o engenheiro capilar baiano fez dois buracos na máscara do cliente, na altura dos olhos.

- Alors, gostou?

Antes de conseguir perceber o corte, o músico reparou que Mané estava em pé ao seu lado, vestido de índia americana, de tanga, cocar e arco e flecha de plástico na mão, e a saliente barriga à mostra. Mas não demorou notar que ele mesmo tinha sido transformado em um Zorro. O avental, preto, era a capa. E a máscara completava a vestimenta.

- Tá valentérrimo. E ainda tem uma espada esperando por você ali atrás, viu? Ou melhor, por nós.

O músico até gostou da mudança. E decidiu ali mesmo montar um grupo com influências country e mexicana. No começo, convidou Mané le Coiffeur para fazer a dança da chuva nos intervalos. Mas foi só ficar um tiquinho famoso e logo esqueceu-se do cabeleireiro. Este lamentou um pouco, mas deu uma jogada de cabelos para trás e decidiu seguir adiante.

- Esses ingratos. Primeiro o Gil, agora o Zorro. Pelo menos no bureau d'esthétique o astro sou eu. Pra consolar, vou ver se o JP não está afim de uma noitada hoje, com muita emoção.

Crônica retirada do blog:cheriaparis.blogspot.com

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