As luzinhas de Natal piscam, verdes e azuis, na decoração do hotel em frente, e não me deixam dormir. Em verdade, não durmo porque necessito escrever e porque ainda resta um pouco de vinho. (Não sei porque citei o vinho, não pretendo beber agora). É a inspiração da madrugada que me põe na boca o gosto agridoce das estrelas e esta angústia que precede o nascimento de um texto.
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Mas o que eu quero dizer é que as luzes de Natal me deixam triste – sobretudo as verdes e as azuis – e que o calor afro-cubano que faz no meu apartamento não combina com os vestígios de nozes e castanhas deixados sobre a mesa da cozinha. Um cigarro acalentaria o meu espírito natalino; mas são três horas da manhã e não há cigarros na carteira. O que há são os flocos de neve falsa no pinheirinho do hotel e eles não me dizem absolutamente nada.
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É chegada a hora de fechar as cortinas para que o acende-apaga do luminoso me deixe escrever em paz. É chegada a hora de colocar um disco na vitrola. (Escrevo vitrola e me sinto o homem mais velho do mundo). É chegada a hora de abrir as portas da percepção para que a sincronicidade se faça presente: puxo aleatoriamente um LP na estante e me vêm à mão o álbum Canções do Natal Brasileiro.
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Com roupas de veludo em pleno verão tropical, a figura importada do Papai Noel aparece deslocada na capa do disco: numa roda de samba plena de estereótipos, Santa Claus toca um cavaquinho remendado, entre perus e garrafas de cerveja, com direito à cachorro vira-lata debaixo da mesa e mulata sambando na soleira da porta. É triste o Natal como triste é a pobreza brasileira, escoltada por uma falsa alegria que me faz pensar novamente nos flocos de neve decorativos.
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Pela fresta da janela posso ver o mendigo dormindo sob a marquise e esta visão me desobriga a escrever sobre ele. Não há inspiração que se sustente ante o fato de que a humanidade é tão inviável em dezembro quanto em janeiro. O chiado da agulha sobre o vinil é, neste instante, a única realidade possível e a voz de Carlos Galhardo passeia pela casa feito incenso:
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“Anoiteceu
O sino gemeu
A gente ficou
Feliz a rezar
Papai Noel
Vê se você tem
A felicidade
Pra você me dar”
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Boas Festas é o nome da canção que agora ouço, comovido como o diabo, lembrando da infância em São Cristóvão, mais tarde em São Vicente, bairros, cidades com nomes de santos, as velas douradas que a avó acendia na ceia, o medo de mastigar a hóstia, o burrico do presépio, barquinhos levando flores para Iemanjá, gira de marinheiro na areia, o cheiro de alfazema que as ondas devolviam à praia, lembranças embaladas pela voz de Carlos Galhardo.
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Na emoção que já compromete a lógica do texto, penso na música que me leva de volta aos tempos de criança. Penso em Assis Valente, o autor de Boas Festas, e é como se ele estivesse presente aqui, nesta sala, entre os livros e os discos, talvez sentado na poltrona do abajur, olhar perdido na marinha do Caymmi (que comprei na Bahia). Voltar ao mar: este é o seu desejo quando chega o Natal com suas ostentações delirantes.
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O mulato Assis Valente era baiano e nasceu não se sabe quando. Consta que foi sequestrado por um louco e abandonado nas ruas do Rio, em 1927. A família nunca mais o encontrou. Ganhou a vida como auxiliar de farmácia, protético, comediante de circo e compositor de samba. Talvez tenha sido o autor mais gravado por Carmen Miranda, mas imortalizou-se mesmo entre os pequenos ao compor a única canção natalina verdadeiramente brasileira.
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O rapaz passou sozinho o Natal de 32. Em seu quarto havia a gravura de uma menina pobrezinha, triste como ele, de pé sobre a cama, esperando Papai Noel chegar com seu presente. Desta gravura, deste clichê real, o sambista extraiu os versos:
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“Eu pensei que todo mundo
Fosse filho de Papai Noel
Bem assim felicidade
Eu pensei que fosse uma
Brincadeira de papel
Já faz tempo que eu pedi
Mas o meu Papai Noel não vem
Com certeza já morreu
Ou então felicidade
É brinquedo que não tem”
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A melodia é melancólica, como convém às canções de Natal, mas traz algo de marchinha carnavalesca, que também não deixa de ter a sua tristeza. Os versos, por sua vez, não mentem para as crianças pobres: nem todo mundo é filho de Papai Noel. Todos podem ser filhos de Deus, a verdadeira razão do Natal, mas o que interessa é o Papai Noel e seu saco de presentes. Uma dura crítica ao consumismo.
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Assis Valente, que veio me visitar nesta madrugada, pedia apenas felicidade – presente que nunca teve. Sua canção natalina celebra os tormentos da solidão que jamais o abandonou. Ele só conseguiu morrer na terceira tentativa de suicídio, ao ingerir formicida com guaraná num banco da Praia do Russell, na Glória, em março de 1958. Entre beijos, abraços e fartas ceias, poucos prestam atenção na mensagem da música. Esta talvez seja a maior tragédia do Natal brasileiro.
Retirado do Blog do Bruno Ribeiro http://www.botequimdobruno.blogspot.com/
Blog da Associação dos Servidores da Universidade Federal de Pelotas, criado pela Coordenação de Divulgação e Imprensa, com o objetivo de interagir diretamente com o associado e a comunidade em geral, debatendo assuntos não só de interesse da categoria, mas de toda sociedade, de forma crítica e participativa.
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