sexta-feira, 16 de outubro de 2009

CRÔNICA

Do esquecimento
Rafael Galvão

Durante muito tempo, em vez de deitar-me cedo, eu apenas não soube de verdade o que significava a palavra esquecer. Via nos filmes alguém se despedindo e dizendo “eu nunca vou esquecer você”, e então me pegava pensando que idiota, claro que não vai esquecer, depois de passar por tudo isso é impossível esquecer.

Foi só ao ver uma cena semelhante pela enésima vez que eu finalmente entendi. A TV passava “Dança com Lobos” e Kevin Costner se despedia de Graham Greene: “Eu nunca vou esquecer você”.

Eu já estava mais velho, já conhecia um pouco mais dessa humanidade impossível de conhecer de verdade. Foi só então, aí pelos vinte e poucos, que entendi o que se quer dizer com isso: não é esquecer a pessoa, que isso não se esquece, mas nunca deixar morrer o que se sentia por ela. É o tipo de coisa que só quando você passou por um bocado de gente na vida pode entender de verdade.

E é esse o problema das gentes, o fato de que no fim das contas todos seremos esquecidos. Eu tento conviver com isso; mas sei bem que a ilusão de que seremos lembrados ajuda a dar um sentido à vida. Imagino que para algumas pessoas a consciência real de que não há memória, só há esquecimento faria da vida algo um pouco mais triste, talvez até a fizesse não valer a pena.

A essas pessoas deve ser vedada a entrada em cemitérios. Porque um cemitério é isso, é esquecimento, e se disserem que é outra coisa estarão enganando você. Um cemitério é um lembrete constante de que você será esquecido, irrevogavelmente. E será esquecido apesar dos seus esforços, tão mais ridículos quanto maiores forem, de tentar ser lembrado.

As pessoas erigem monumentos, botam estátuas de anjos e de santos para guardar seus ossos inúteis, colocam na pedra ou no bronze seus nomes, colocam até panegíricos que ultrapassam o limite do ridículo, ostentam os títulos que lhe orgulhavam e lhe engrandeciam aos seus próprios olhos. Fazem o que está ao seu alcance para alcançar uma imortalidade, se não na alma, pelo menos na memória e nos tempos deste mundo.

E no entanto eles serão esquecidos, e se forem lembrados será para serem ridicularizados, olha que idiota, tanta pompa e tanto dinheiro gasto para nada, quem esse merda achava que era, fulano de tal, que diabo ele fez para achar que lembraríamos dele?

No começo do ano vi uma pequena multidão diante de um túmulo novo no Pére Lachaise. Flores, muitas flores, inclusive uma coroa do Olympia. Devia ser um artista.

Artista morre a três por quatro, normalmente velho, esquecido e fora da ribalta, mas aquele pelo visto era alguém, porque o tanto de flores e o tantinho de gente à sua volta eram um atestado, senão de glória, pelo menos de fama.

Um sujeito jovem, drogado e bêbado, trazendo na cara loura e de traços grosseiros marcas de uma ou mais brigas recentes, era um dos mais comovidos. Estava em pé diante do túmulo e pela bagagem que carregava tinha vindo de longe apenas para prestar ao falecido uma última homenagem, talvez para adorar seu novo santo em seu próprio altar.

Perguntei a uma moça velha também parada ali quem era o ilustre defunto, quase pedindo desculpas por não saber quem jazia ali, e a senhora não sabia. Então o sujeito veio falar comigo, e como eu só gosto dos malucos da minha terra larguei um jenecompranpá, um aidonspicfrentch, e para ter certeza de que ele compreendeu mandei também um balançar de cabeça e um dar de ombros e levantar de mãos súplices. E quando ele viu que eu não entendia, ele também deu de ombros, e voltou a sua atenção ao pequeno jardim à nossa frente.

Ele olhava o túmulo como a Rosinha de Caymmi olhava o mar, Rosinha que era bonita e agora parece que endoideceu, na beira da praia, olhando pras ondas, andando, rondando, dizendo baixinho “Morreu… Morreu…”, e eu que não endoideci nem nada olhava para ele, esperando a hora em que iria desmaiar ou morrer de overdose ali, um pequeno sacrifício romântico e estúpido diante do altar do seu ídolo.

Um velho gordo, baixinho, com aquela cara de provinciano do vale do Loire, passou pelo sujeito e viu o aglomerado e disse em voz alta que o morto não era ninguém, não era nada. E o rapaz se irritou, porque a gente não mexe impune com a fé dos outros, e começou a discutir com o velho, ele era um grande compositor, um gênio lírico, um grande cantor, um grande ídolo e modelo da juventude, e o velho gordote e baixinho sem tirar as mãos dos bolsos deu também de ombros e soltou aquele pequeno flato oral que franceses gostam de soltar e se afastou.

Eu me afastei também.

Mais tarde eu descobriria quem era o sujeito. Se chamava Alain Bashung, era conhecido como “l’enfant terrible du rock” apesar de já ter passado os 60 anos, tinha morrido uma semana antes. Em vez de viver rápido, morrer cedo e deixar um cadáver bonito, como sói fazer qualquer roqueiro que se respeite, morreu em idade quase provecta de um câncer prosaico, e morte por câncer na velhice é morte indigna de roqueiro, mas fazer o quê, os tempos mudaram muito desde a época em que Jim Morrison, enterrado ali perto, morria por excesso de vida. Diziam as capas das revistas que Bashung era um grande ídolo — e talvez fosse mesmo, e me disponho a admitir isso porque certamente não conheço todos os grandes ídolos universais que existem por aí.

Daqui a 50 anos o túmulo de Bashung provavelmente estará esquecido como outros tantos no mesmo Pére Lachaise. E o ardor do seu fã embriagado e entorpecido não terá significado nada. Diante do túmulo de Bashung, onde num dia de março do início do século um garoto fora de si quase brigou em defesa de sua memória, um bocado de gente vai passar e vai dar de ombros, se sequer se der a esse trabalho, como hoje diante do túmulo dos generais e políticos e escritores e gente que se supunha imortal e inesquecível — algo de que o tempo discordava.

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