Uma mudança nos rumos da esquerda
Para o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, algo está “diferente” na esquerda, em especial na latino-americana: “os movimentos estão reclamando a sua autonomia, suas agendas, e não passam o cheque em branco aos partidos”, analisa, ressaltando também a importância das organizações indígenas nesse novo cenário
por Vanessa Marx
Le Monde Diplomatique Brasil – Qual a formação política para ser de esquerda hoje?
Boaventura de Sousa Santos – Ogrande problema é saber o que é ser de esquerda hoje. No século XX havia duas esquerdas e nenhuma delas considerava que a outra era de esquerda. Era a divisão entre os partidos socialistas e os partidos comunistas, quando da primeira guerra mundial. Os comunistas nos anos 1920 consideravam os socialistas como sociais-fascistas. Portanto, no parlamento francês, mas sobretudo no inglês, o partido comunista criticava sempre qualquer melhoria que se pudesse obter por via eleitoral por acreditar que só uma transformação revolucionária é que poderia dar aos trabalhadores e à população em geral o bem-estar que eles mereceriam. Portanto, temos uma tradição de duas esquerdas, uma ferozmente anti-socialista e outra ferozmente anticomunista. Essa tradição continua marcando a Europa com muita veemência.
A América Latina teve também essa divisão. Basta olhar o comportamento do partido comunista, que inicialmente não aceitou a revolução cubana por não ser originária dele; na corrente socialista, extremamente agressiva do ponto de vista da orientação socialista, que foi Salvador Allende. Nós tivemos sempre a tradição de várias esquerdas no continente. Hoje são todas democráticas, como elas se autodenominam. Mesmo as que se reivindicam revolucionárias chegaram ao poder por esta via ou lutam para fazê-lo por meio dela, pelas eleições. O partido no governo em El Salvador veio da guerrilha. Selou a paz e hoje se considera revolucionário, mas sua revolução é a democrática. No caso do Partido Socialista Unificado da Venezuela, ou do próprio Aliança País, do Equador, estes são partidos-movimentos que se reivindicam de uma esquerda revolucionária, mas igualmente democrática.
Qual a diferença? A esquerda revolucionária tem como horizonte o socialismo do século XXI, do futuro, numa designação que no fundo não sabemos o que é. A esquerda progressista ou centro-esquerda é aquela que não põe no horizonte o socialismo, ou seja, acha que é possível fazer uma melhoria significativa no bem-estar das populações por meio da via democrática, nos marcos em que ela está. Temos aqui o exemplo do PT e da Concertación chilena, que procuram repolitizar o público. De fato, o PT tem uma função extraordinária, aquilo que a gente chama repolitizar o público depois do neoliberalismo, dando outra consistência às políticas públicas e outro papel ao Estado, muito mais forte, mais interventor, mas que não tem a pretensão de mudar o modelo econômico.
Assim, quando me perguntas qual a formação para ser de esquerda, eu tenho que perguntar, para que esquerda?
Hoje há outro tipo de movimentação social. E o Fórum Social Mundial teve um papel muito importante nisso, pois mostrou que os partidos não detinham o monopólio de representação política dos movimentos populares. Há hoje uma convicção de que a esquerda, qualquer que seja a sua orientação, se apóia nos movimentos sociais e não pode se distanciar deles. Nem sempre essa ligação é a melhor, nem sempre ela é compreendida: ainda temos resquícios de uma tentativa de monopolizá-los, de se apropriar deles, de eliminar a sua autonomia, colocá-los a serviço das agendas eleitorais. Mas acredito que algo está mudando, os movimentos estão reclamando a sua autonomia, suas agendas, e não passam o cheque em branco aos partidos. Eu penso que a mobilização social é crucial a toda a formação de esquerda.
Outro aspecto, no meu entender, é uma revolução epistemológica. A esquerda na América Latina, na África e na Ásia não pode, de modo nenhum, centrar-se exclusivamente no conhecimento eurocêntrico. A própria tradição marxista, na medida em que continua a ser uma referência para muita gente de esquerda, eu incluído, tem que ser profundamente transformada. Tem que ser ou um marxismo plurinacional ou um que entenda de fato o debate civilizacional em que estamos neste continente, onde os movimentos indígenas, de alguma maneira, trouxeram para a agenda política outros padrões de desenvolvimento.
Tomemos, por exemplo, o conceito de suma causa, que em quéchua designa o buen vivir ou viver bem, na Constituição do Equador e na da Bolívia. Da mesma forma, lembremos dos direitos da pacha mama, no Equador. Trata-se de uma outra concepção da natureza, da necessidade de termos uma relação harmoniosa com ela, de preservarmos os bens que nós chamamos naturais e que neste momento são mais um capital social do que um capital natural. Eu penso que há aqui uma mudança cognitiva, epistemológica, em que a esquerda tem que aprender muito e tem que desaprender muito, por incrível que pareça. Por quê? Porque todo o pensamento crítico foi criado em cinco países da Europa no final do século XIX e início do século XX, em especial na Inglaterra ou na França, na Alemanha e na Itália; depois um pouco também nos Estados Unidos. Porém, as transformações mais inovadoras e mais progressistas no mundo não ocorrem no Norte, ocorrem no Sul.
Já havia alguns sinais disso. Os orçamentos participativos, que se conhece muito bem, foram uma inovação que a Europa recebeu da América Latina. E agora existe o debate sobre o socialismo do século XXI. São grandes novidades que a teoria crítica eurocêntrica não tem capacidade de absorver. Não tem, por exemplo, capacidade para absorver uma das coisas fundamentais nos nossos dias, não há transição para outra sociedade, para um socialismo do século XXI ou para o que se quiser, se essa transformação não for acompanhada por uma ruptura com a tradição do colonialismo, para a descolonização.
As lutas inter-raciais, os direitos coletivos dos afrodescendentes e dos indígenas, a plurinacionalidade, tudo isso conota o quê? Uma mudança cognitiva. O marxismo chegou a entender que o colonialismo era uma força de progresso porque trazia as colônias para a área do desenvolvimento econômico. Eu penso que há uma grande divisão na esquerda sobre isso, pois o colonialismo não terminou: ele continua hoje no racismo, nas dificuldades de acesso aos bens públicos por parte das minorias. No Brasil, recentemente concluiu-se que a democracia racial não é uma realidade, é um projeto. E, como projeto, tem de ser levado a cabo através de políticas públicas adequadas. Daí as ações afirmativas através de cotas.
Diplomatique – Em relação ao trabalho que você está fazendo com a universidade popular1 e com os movimentos sociais, a formação popular ou para a cidadania, ela incide nas políticas públicas?
BSS – A cidadania é um conceito muito complexo na medida em que foi criada fundamentalmente para solver indivíduos dentro dela. Não abrange todos os indivíduos que habitam num país, como os imigrantes, e todos aqueles que durante muito tempo nem sequer tiveram o direito do voto, como as mulheres, mas a conquista da cidadania é uma conquista individual, é para se conquistar a inclusão individual num contrato social. Há muitas pessoas que durante um longo tempo sequer tiveram o direito ao voto, como as mulheres. A conquista da cidadania é individual, é uma inclusão particular num contrato social.
Nós hoje vivemos num mundo em que os conceitos de cidadania estão sendo complexificados. Falamos de cidadania cultural, falamos de cidadania ativa, falamos de revolução cidadã – veja o caso do Equador. Se nós usarmos os conceitos liberais, revolução cidadã é praticamente uma contradição porque os cidadãos nunca fazem revolução enquanto indivíduos, só quando se organizam em partidos e em movimentos. Portanto, a cidadania é um conceito hoje em disputa: são conceitos individuais, coletivos ou uma articulação entre eles. Penso que não existe um conflito necessário entre direitos coletivos e individuais: os direitos coletivos criam condições para que os direitos individuais sejam efetivamente investidos.
Trata-se de criar igualdade material, e não apenas formal. Isso se aplica às mulheres, aos afrodescendentes, aos indígenas e demais minorias. Quando falamos em cidadania, falamos no registro individual ou individualista. Quando falamos no movimento popular, falamos no registro da organização das classes populares que tradicionalmente tiveram apenas dois grandes modelos para tal: o partido e o sindicato.
As políticas públicas, seja numa perspectiva de cidadania, seja numa perspectiva dos movimentos populares, têm a ver com quem as demanda, quem determina o seu perfil. Num ponto de vista de movimento popular, as políticas públicas surgem de baixo e são construídas a partir das necessidades do povo. Há uma dimensão coletiva da organização dos movimentos populares que vai determinar a amplitude das políticas públicas, por exemplo, o papel que teve e tem o movimento da saúde.
Mas é evidente que existem formas de cidadania ativa também com organizações, ainda que estas não tenham tanta consciência da sua coletividade. Há misturas muito interessantes do ponto de vista de teoria política. São bons exemplos o orçamento participativo e a democracia participativa; ou agora os conselhos municipais, estaduais, de saúde, habitação e previdência. São formas de participação muito fortes que vêm da tradição liberal da cidadania e que têm sido aprofundadas para além do próprio liberalismo, apresentando algo coletivo.
Daí a disputa que nós temos hoje no recorte das políticas no Equador e na Bolívia ou aqui no Brasil, como é o caso da educação intercultural e das políticas de saúde. Como é que se articula na Amazônia a saúde pública eurocêntrica e a ancestral, que é riquíssima? Isso só é possível porque há movimentos sociais que deram visibilidade a esses outros conhecimentos. É por isso que, por trás de uma revolução epistemológica, está outra maneira de conceber a saúde e a educação.
Diplomatique – Estamos falando em formação popular ou em formação para a cidadania?
BSS – A educação para a cidadania teve sempre um registro individualista na sua origem, assim como a polarização entre o educador e o educado. Ou seja, a inclusão dos excluídos faz-se a partir do ponto de vista dos incluídos. São eles que determinam, decidem e veem em certo momento o que é exclusão, em que ela consiste e, a partir daí, desenvolvem políticas para eliminá-la. Portanto, o registro da cidadania tem em si vieses não só individualistas como paternalistas e até populistas, na medida em que a relação entre educador e educado, incluído e excluído, se dá a partir do educador e a partir do incluído, que determinam os padrões de exclusão e de inclusão.
No registro popular, as coisas se passam de uma maneira diferente. É uma linguagem que tem outra história, outra orientação política.
Aí, não só a justificativa não é individualista, como por outro lado, a educação não tem essa polarização de educador e educado, reivindicando o conhecimento popular.
No meu trabalho, por meio do conceito de ecologia do saber, todos somos sujeitos do conhecimento, todos somos ignorantes de alguma forma e sabedores de outra. Portanto, temos de aprender a respeitar os diferentes conhecimentos que são úteis para algumas coisas e não o são para outras. Isso acontece com qualquer conhecimento científico, indígena, ancestral, urbano etc.
São essas outras formas de conhecimento que determinam efetivamente que a inclusão deve ser decidida pelos excluídos. Ou seja, os excluídos têm de ter uma palavra nos critérios de inclusão: o que eles não querem e o que querem. Esse é o princípio, digamos, originário dos próprios movimentos populares, que determina qual é o recorte efetivamente dessa inclusão.
Diplomatique – Equador e Bolívia são hoje estados plurinacionais e a refundação do Estado passa por esses elementos da plurinacionalidade. Como você vê essa experiência, em que os movimentos indígenas têm um papel muito forte? Há diferenças entre os dois?
BSS – Eu estou terminando exatamente um livro que se chama A Fundação do Estado na América Latina a partir das Epistemologias do Sul. Nele comparo os dois processos, o boliviano e o equatoriano, a partir de vários parâmetros da plurinacionalidade, que convoca outro conceito de soberania, outra institucionalidade do Estado, outra territorialidade, organização territorial.
Ela é uma transformação profunda do Estado porque junta dois conceitos que até agora não se reconheceram mutuamente: o de nação cívica, que é dos cidadãos, e o de nação de todos os indivíduos, que são equatorianos e bolivianos; e a nação étnica e cultural, as pertenças ancestrais, a mesma história, a mesma cultura, a mesma língua. E a verdade é que não há, necessariamente, conflito entre eles. Os indígenas do Equador consideram-se equatorianos. Obviamente os da Bolívia consideram-se bolivianos. Só que são também aimaras, quéchuas, chuara. O que significa que há diferentes formas de pertença à nação e há diferentes conceitos de nação.
Esse é o grande desafio da plurinacionalidade porque nós não estamos preparados para essa consciência. Somos todos filhos de um pensamento liberal que diz que só tem um Estado, uma nação, um direito, uma cultura.
Diplomatique – Em relação ao Brasil, dada a proximidade do governo Lula com os movimentos sociais, essa relação esvaziou a capacidade de pressão dos movimentos? Este campo político poderá se rearticular pós-eleição?
BSS – É verdade que com a eleição de Lula os movimentos sociais entenderam que tinham um amigo na presidência e isso foi um fator de desmobilização, mas não aconteceu com todos. Não aconteceu com o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), por exemplo, nem com o movimento indígena, que foi, aliás, muito golpeado pelas políticas desse governo. Também não aconteceu com o movimento quilombola, que tem tido uma força e uma presença política crescente no Brasil e que, neste momento, tem as suas conquistas pendentes no Supremo Tribunal Federal. Portanto, não podemos dizer que todos os movimentos sociais se desarmaram. É evidente que aqueles de recorte urbano, direitos humanos, direito da paz, direito da habitação e até o próprio movimento ambiental sentiram, num primeiro momento, que tinham um amigo na presidência.
Aos poucos eles foram vendo que o amigo na presidência, que é um amigo, obviamente, tem outros amigos. Tem muitas pressões em cima dele. E essas pressões vêm de cima, vêm normalmente da esfera nacional e internacional. E, portanto, se não houver uma pressão de baixo para cima, a pressão de cima para baixo estará sempre forte. Os movimentos sociais não deveriam se desarmar com o presidente Lula porque até o ajudariam se mantivessem essa mobilização. O seu governo é muito sujeito a pressões de cima, dos que procuram que ele se mantenha o mais bem comportado possível pró-capitalismo e, naturalmente, os movimentos sociais têm de fazer uma pressão em sentido contrário.
Vanessa Marx é advogada da equipe técnica do Instituto Pólis e doutora em ciência política pela Universidade Autônoma de Barcelona (UAB).
Blog da Associação dos Servidores da Universidade Federal de Pelotas, criado pela Coordenação de Divulgação e Imprensa, com o objetivo de interagir diretamente com o associado e a comunidade em geral, debatendo assuntos não só de interesse da categoria, mas de toda sociedade, de forma crítica e participativa.
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