terça-feira, 4 de maio de 2010

Os problemas da ficha limpa

Por Jorge Furtado

Um professor, candidato à prefeito de uma pequena cidade do interior, não tinha muito dinheiro para fazer campanha. Conseguiu o apoio de uma gráfica, um desconto para imprimir dois mil panfletos, em duas cores, que iam lhe custar mil reais. Este professor trabalhava há muito tempo com comunidades carentes, criou bibliotecas comunitárias, incentivando à leitura. E aí ele teve uma idéia: cortando seu panfleto, transformaria cada um em quatro marcadores de livros. Assim, pelo mesmo custo, teria quatro vezes mais material para divulgar sua candidatura e ainda lembrava aos eleitores do seu trabalho, talvez até incentivasse algum deles a ler, parecia uma ótima idéia. E assim fez, e assim foi eleito. Eleito e cassado, distribuir panfletos não é crime mas distribuir marcadores de livro sim, o marcador é considerado um brinde, é crime eleitoral.

Este absurdo, possível pela lei já em vigor no país, seria ainda pior se a chamada lei da “ficha limpa” fosse aprovada. O nosso prefeito, julgado e condenado, não poderia sequer ser candidato outra vez, mesmo que a maioria dos eleitores de sua cidade quisesse vê-lo na prefeitura, mesmo que fosse absolvido em última instância e, portanto, julgado inocente. Se aprovar o projeto da “ficha limpa” a sociedade brasileira estará sinalizando que o poder judiciário, não eleito, é mais confiável que os poderes executivo e legislativo, eleitos. Estará sinalizando que ela, a sociedade brasileira, é incompetente para governar a si mesma.

Se for aprovado, o tal projeto da “ficha limpa” tem muita chance de ser considerado inconstitucional, já que a constituição estabelece a presunção de inocência, ninguém é considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença, com todas as possibilidades de recurso.

Tenho certeza que todos que assinaram o projeto de lei da “ficha limpa” têm ótimas intenções: melhorar o nível da política brasileira, impedir que contraventores se refugiem na imunidade parlamentar ou que picaretas assumam cargos públicos. Criar uma nova lei, mais uma, ou entregar ao poder judiciário – não eleito – a tarefa de determinar quem pode ou não representar a vontade do eleitor, não parece ser a melhor maneira de atingir estes objetivos.

Nossa democracia tem 21 anos e, na minha opinião, não para de melhorar. Nosso presidentes só melhoraram, o país melhorou muito, as maracutaias são divulgadas, a polícia prende pessoas de várias classes sociais, a imprensa trabalha com total liberdade, a internet garante a diversidade de opiniões. Numa democracia os segredos minguam. Por aqui sobram secretos os arquivos da ditadura, algumas provas apreendidas por operações policiais que vazam de conta-gotas conforme o interesse de quem as detém, onde anda o Picasso do INSS, o grampo sem áudio, de onde veio o dinheiro do dossiê, cadê o Picasso do INSS? Ouvi de um empresário, que preferiu não receber créditos pela ótima frase: “Numa democracia com liberdade de expressão somos condenados a ser éticos”. Enquanto os totalitarismos e as religiões lidam com a culpa, uma doença, a democracia opera com o “medo de ser apanhado”, uma atitude muito saudável.

Os que não tem gostado das escolhas que o povo brasileiro tem feito e acham que o país vai de mal (Lula) a pior (Dilma), apelam para a moral e os bons costumes, quando não à etiqueta. Vi com meus próprios olhos e ouvi com meus próprios ouvidos cientistas políticos criticando duramente o fato de um presidente democraticamente eleito, deposto por um golpe de estado e asilado político de uma embaixada brasileira, estar estendendo roupas no jardim e colocando os seus pés sobre a mesinha da sala! A nossa mesinha! E usando aquele chapéu! Ontem mesmo vi e ouvi jornalistas, cientistas políticos, deputados de diferentes partidos, rindo e fazendo piadas sobre o estado do Maranhão. A frase “ele e o Maranhão se merecem” foi festejada às gargalhadas.

A onda moralista e os preconceitos, incentivados pela mídia, não são um problema apenas brasileiro. Noam Chomsky, entrevistado por Chris Hedges no site Internet Truthdig, alerta para o desencanto com a política nos Estados Unidos, sentimento amplificado pela ultra-direita americana:

“Nunca vi nada parecido em toda a minha vida. O humor do país é assustador. O nível de ira, frustração e ódio às instituições não está organizado de maneira construtiva. É desviado para fantasias auto-destrutivas. É muito similar a Alemanha de Weimar, os paralelos são notáveis. Também ali havia uma desilusão tremenda com o sistema parlamentar. (…) Os Estados Unidos tem muita sorte que nenhuma figura carismática e honesta tenha surgido. Todas estas figuras carismáticas são trapaceiros tão evidentes que destroem a si mesmos, como McCarthy ou Nixon ou os pregadores evangelistas. Se surgir alguém carismático e honesto este país estará em sérios problemas, graças a frustração, a desilusão, a compreensível raiva e a ausência de respostas coerentes. O que as pessoas supostamente querem é alguém que lhes diga: ‘Eu tenho a resposta: nós temos um inimigo’. Na Alemanha, o inimigo criado para justificar a crise foram os judeus. Aqui serão os imigrantes ilegais e os negros. Nos dirão que os homens brancos são uma minoria perseguida. Nos dirão que temos que nos defender e defender a honra da nação. Se exaltará a força militar. As pessoas vão apanhar. Esta força pode tomar conta de tudo. E se acontecer serás mais perigoso do que foi na Alemanha. Os Estados Unidos detém o poder mundial. A Alemanha era poderosa, mas tinha inimigos mais poderosos.”

Republico aqui trecho de um texto que escrevi um dia desses:

No momento em que quase todos, mais do que nunca, repetem que “políticos são todos ladrões” e que “política é tudo a mesma coisa”, me permito dissentir. Nunca me arrependi dos meus votos. Tive sorte? Acho que não. Votei 8 vezes para presidente (considerando primeiros e segundos turnos), sempre no Lula. (Aliás, Lula também votou 8 vezes para presidente, sempre nele mesmo, suponho.) Já votei em Olivio Dutra , Tarso Genro e Raul Pont, para a prefeitura de Porto Alegre o para o governo gaúcho. Votei também nos senadores Pedro Simon e Paulo Paim, no deputado Henrique Fontana, no deputado Flavio Koutzi, na candidata (não-eleita) ao senado Vera Guasso e em vários candidatos a vereador, alguns eleitos outros não, candidatos do PT, PMDB ou do PSOL. Repito: nunca me arrependi dos meus votos. Há centenas de políticos honestos, desempenhando a tarefa indispensável de manter viva a democracia brasileira. Não digam que são todos iguais. E, se disserem, não acreditem. Basta saber escolher.

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E aqui vai um trecho do ótimo texto do Giba Assis Brasil (“Ficha limpa: sou contra!”):

“Em vez do apoio ao projeto, não proponho campanha nenhuma. Apenas um exercício: você lembra em quem votou pra Deputado Federal? Eu lembro. Votei no Eloar Guazzelli em 1978, no Hermes Zanetti em 1982, no Tarso Genro em 1986, no Clóvis Ilgenfritz em 1990, na Esther Grossi em 1994 e 1998, no Marcos Rolim em 2002, na Maria do Rosário em 2006. Empatei: quatro se elegeram, quatro não. Segui pela imprensa o mandato dos que foram pra Brasília, acompanhei mais ou menos de longe a vida pública de todos. Nem sempre concordei com o que cada um deles fez depois do meu voto, pra que partido foi, que cargo assumiu e em que circunstância, que posição tomou em tal crise ou em tal votação. Mas nenhum deles me deu qualquer motivo pra eu me arrepender de ter votado.”

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